HOOSTILIDADE

E ORGULHO:

HOOSTILIDADE E ORGULHO

A TRAJETÓRIA DO PARALELO BOLSONARO E A COMUNIDADE LGBTPQIA+

Assim como a maioria das expressões da língua portuguesa, o termo “paralelo” adquire significados diferentes a depender do seu emprego morfológico. Na geometria, por exemplo, a expressão remete diretamente à ideia de dois caminhos, duas retas que seguem a mesma direção, mas que não se cruzam. No sentido figurado, quando utilizamos a expressão “mundo paralelo”, estamos nos referindo ao conceito de um mundo que não existe e que de tão absurdo consegue ser fantasioso. Enquanto substantivo masculino, o vocábulo ainda pode significar confronto ou até mesmo comparação. Nesta reportagem, os paralelos remetem a tudo isso e não só se encontram como também divergem.

O movimento LGBTPQIA+ no Brasil pode ser pensado a partir de vários paralelos. Quando analisadas a trajetória do atual presidente da república e a história do movimento, percebe-se que elas acontecem de uma maneira quase simultânea atravessadas pelos momentos em que, estando em diferentes lados, entram em embate. Não é preciso ir muito longe, há exatamente dois anos, o Brasil criminalizava a homofobia, justamente no governo de um presidente conservador e com um histórico de declarações polêmicas quando questionado sobre os temas que envolvem essa comunidade.

Na sua agenda política, o presidente Bolsonaro, enquanto ocupou os cargos de vereador e deputado federal, sempre mencionou a população LGBTPQIA+ em suas polêmicas aparições na mídia. Nesta reportagem, alguns desses episódios são contextualizados e debatidos. Apesar de antagônicos, a comunidade LGBTPQIA+ e o presidente Bolsonaro possuem uma linha tênue que é cruzada diversas vezes ao longo da história.


Homofobia é crime


Sendo equiparada aos dispositivos da lei de racismo, a homofobia foi criminalizada em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com Kamilee Lima, advogada e membro da Comissão de Direitos LGBTPQIA+ da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Sergipe (OAB/SE), “quando o STF compara LGBTfobia com o racismo, significa dizer que todos os tipos penais previstos pela Lei Antirracismo podem ser enquadrados quando estivermos diante da prática deste crime contra uma vítima LGBTPQIA+. Nesse caso, os crimes não resultam de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (listados na referida lei), mas sim de um preconceito decorrente da orientação sexual e/ou identidade de gênero”.

Essa declaração foi dada por Bolsonaro quando questionado, em uma reunião com jornalistas no Palácio do Planalto, sobre a decisão do Supremo em criminalizar a homofobia. Dois anos depois, Kamilee avalia que a resolução foi uma vitória para a comunidade. “Acredito que essa decisão veio como um alento, uma forma de mostrar que apesar dos pesares, o Judiciário brasileiro, ao contrário do seu vizinho, o Poder Legislativo, não está inerte acerca dos casos de violência homotransfóbicas”. Ainda de acordo com ela, a decisão do Supremo mudou tudo. “Todo o sistema precisa se adequar a esta determinação, visto que surge a necessidade de constituição de delegacias preparadas para atender as vítimas de LGBTfobia, além de promotorias ministeriais; na Bahia, por exemplo, já há uma promotoria do Ministério Público responsável por tratar de violações de direitos LGBTPQIA+”.

Analisar as conquistas dessa comunidade, contextualizando com as declarações do presidente, ajuda a entender não só as conquistas do movimento, mas porque elas se revelam necessárias.

Retrospecto de Resistência


A pesquisa “Sexualidade, história e notícia: representações sexuais na imprensa sergipana” (1988-1999) realizada pelo professor e mestrando do curso de História na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Max Wesley dos Santos, aponta os primeiros passos do movimento LGBTPQIA+ não só em Sergipe, como no Brasil: “Há um consenso historiográfico que aponta dois eventos como marcos fundadores do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB): A chegada do jornal Lampião da Esquina, em abril de 1978, às bancas de revistas do Brasil; e alguns meses depois a formação do Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, posteriormente passando a se chamar Somos”. O MHB foi o primeiro momento da organização da comunidade LGBTPQIA+ no país. Ainda de acordo com Max Wesley, “o Lampião foi de suma importância para o MHB, pois nas suas páginas encontravam-se relatos do momento histórico em que homossexuais escrevendo para outros homossexuais, tomaram a palavra para si, para falar sobre si, em um momento da história brasileira que abordar um tema como as homossexualidades no cotidiano era inadequado”.

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As capas das edições dos meses de fevereiro de 1979, maio de 1979, junho de 1980 e janeiro de 1982 disponibilizadas no Instituto Brasileiro de Diversidade Sexual (IBDSEX)

É preciso lembrar que, nas décadas de 70 e 80, a discussão sobre transexualidade e outras questões de gênero eram incipientes. O MHB surge, mas com o decorrer do tempo, a sigla do movimento, assim como a agenda de pautas, sofreu mudanças para englobar e representar todas as identidades de gênero e orientações sexuais. A sigla GLS foi criada em 1994, ela significa “gays, lésbicas e simpatizantes”, mas revelou-se genérica, pois “simpatizantes” se referia a qualquer pessoa, inclusive pessoas heterossexuais. A partir de então, a sigla passou a ser GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), até se tornar LGBTPQIA+. Nos últimos anos, o “Q”, “I” e “+” foram acrescentados para englobar outras identidades. As alterações da sigla revelam a busca autônoma pela representatividade de cada grupo dentro do próprio movimento. Por isso, entende-se que o uso do termo LGBTPQIA+ é o mais adequado para de fato representar diretamente as histórias desta reportagem.

Apesar do início do movimento LGBTPQIA+ estar datado aos anos 70, segundo a pesquisa do professor Wesley Max, já em 1960 existiam iniciativas em defesa dos direitos das pessoas gays, porém acabaram sendo repreendidas pelo regime militar. No final dos anos 1960 e início da década de 1970, ao mesmo tempo em que se perseguiam a liberdade sexual, inúmeras boates e espaços de sociabilidade entre homossexuais surgiam e conviviam paralelamente com a forte repressão do Estado. A presença de travestis e homossexuais nos guetos e espaços urbanos de convívio afrontava aos que cultivavam os valores da dita "família tradicional". De acordo com o professor, “o Movimento Homossexual no Brasil surge no contexto da abertura do regime militar. É um período de anseios democráticos, que consequentemente levava ao Movimento possuir demandas contra a ditadura. O Lampião, no seu editorial de número 0, já trazia nas suas páginas um pouco dessas aspirações”. Ele ainda cita um momento relatado nos escritos que utilizou para construir a sua pesquisa. “Há um episódio específico contado por João Silvério Trevisan no livro Devassos no Paraíso (2019) em que os editores do Lampião são enquadrados pela ditadura e convidados a depor com a Lei de Segurança Nacional por infringir ‘à moral e os bons costumes’. Dado o depoimento, ninguém fora preso ou torturado, mas a intimação estava dada”, afirma Max Wesley.

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O declínio do regime ditatorial e os novos ares trazidos pelos anos 80, possibilitaram por exemplo, a retirada do termo homossexualidade enquanto doença listada pelo então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Também é na década de 80 que muitas dificuldades são enfrentadas. A epidemia do vírus do HIV e da Aids teve forte impacto na maneira que a mídia e a sociedade retratavam a comunidade LGBTPQIA+. “A epidemia de Hiv/Aids foi uma faca de dois gumes para o Movimento Homossexual. Alí, em meados da década de 80, o movimento começava a se dissipar, diminuir o quantitativo de grupos, isso por conta da epidemia. Porém, a luta contra o vírus/doença tornou-se uma nova bandeira para os grupos homossexuais que começaram a encampar e organizar a luta contra a epidemia, seja em nível de conscientização pública ou associação com os órgãos do Estado para criação de políticas públicas, a mais antiga, extensiva e a conhecida dessas ações foram as Gapa’s (Grupos de apoios a prevenção a Aids)”, explica o professor de história Max Wesley. Os anos 2000 foram marcados pelo fortalecimento de ONGs e pela luta em busca dos direitos da população LGBTPQIA+. Hoje, no Brasil, pessoas trans podem alterar, no registro civil, o prenome e o sexo diretamente nos cartórios, sem necessidade de autorização judicial. Até algumas conquistas, por mais significativas que sejam, ainda podem ser consideradas tardias. Como, por exemplo, a suspensão das restrições que impediam os homossexuais de doarem sangue, que permaneceu em vigor até o ano de 2020, quando finalmente o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou as restrições de doação de sangue por homens gays que tinham feito sexo com outros homens nos 12 meses anteriores a coleta.

Ascensão do conservadorismo


Enquanto o movimento LGBTPQIA+ se organizava aqui no Brasil, o capitão reformado Jair Bolsonaro dava os seus primeiros passos na política, sendo eleito em 1989 como vereador pelo Partido Democrata Cristão (PDC), e acumulando passagens pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM); Partido Progressista (PP); filiando-se em 2016 ao Partido Social Cristão (PSC) e sendo eleito presidente, dois anos depois, pelo Partido Social Liberal (PSL). Atualmente, ele exerce a função de presidente do Brasil filiado ao Partido Liberal (PL).

Na sua carreira política como vereador e deputado, o ex-capitão reformado do exército e agora presidente, homenageou várias vezes torturadores da época da ditadura, além de sempre proferir declarações inflamadas a respeito da comunidade LGBTPQIA+. No primeiro mês de mandato, o presidente excluiu essa população das diretrizes de Direitos Humanos. No decreto de nº 870, assinado pelo presidente Bolsonaro em seu primeiro dia de governo, havia a menção a garantia de proteção, reconhecimento e valorização da mulher, família, criança e adolescente, juventude, idoso, pessoas com deficiência, população negra, índio e minorias étnicas e sociais, mas sem nenhum ponto que tratasse da população LGBTPQIA+. A medida provisória foi publicada no Diário Oficial e detalhava mudanças na estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que no governo anterior inseriu na sua estrutura a promoção e garantia dos direitos humanos também às pessoas LGBTs. Diante da quantidade de críticas à exclusão, o Ministério voltou atrás e informou que a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais seria mantida com a mesma estrutura, mas na pasta da Secretaria Nacional de Proteção Global.

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Recortes de jornais sobre o Movimento de Afirmação Homossexual

Já em agosto do mesmo ano, após críticas do presidente, o então ministro da Cidadania Osmar Terra suspendeu por 180 dias, com possibilidade de prorrogação por mais 180, um edital que contemplava o financiamento para filmes e séries com temáticas LGBTPQIA+, além de ter sido contra o vestibular específico para pessoas trans na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), anunciando na sua conta do Twitter a suspensão do processo seletivo após “intervenção” do MEC — mesmo sabendo que de acordo a Constituição Federal, as universidades brasileiras possuem autonomia suficiente para decidir a respeito tanto das suas questões administrativas quanto das suas condições de acesso. A postura muitas vezes negacionista, contrária e minimizadora reflete o modo com o qual o atual presidente reage às adversidades ou com os comportamentos que fogem da sua capacidade de lidar com o diferente.

Essa declaração foi concedida por Bolsonaro em uma entrevista ao documentário “Out There”, que em livre tradução significa “lá fora”. No projeto apresentado pelo britânico Stephen John Fry, o cineasta viaja por vários países para entender os desdobramentos sobre o avanço da homofobia no mundo. O documentário foi exibido na British Broadcasting Corporation (BBC), no Reino Unido, em 2013. Enquanto o então deputado na época insistia em negar uma realidade vivida por milhares de pessoas LGBTs, o documentário apresentado por Stephen demonstrava uma realidade completamente diferente.

Além da entrevista com Jair Bolsonaro, o apresentador conta a história de Alexandre Ivo, um garoto de 14 anos, de São Gonçalo (RJ), que foi brutalmente torturado e assassinado em junho de 2010, sendo vítima de preconceito homofóbico. Outra vítima de LGBTfobia retratada no documentário foi a drag queen Renta Peron, que foi brutalmente atacada por nove homens quando atravessava a Praça da República, na região central da cidade de São Paulo. Na entrevista, Renata Peron lembra que o caso dela não é isolado. “O Brasil inteiro está repleto de homofobia”. Os casos lembrados pelo documentário há cerca de dez anos e as antigas declarações do hoje presidente reforçam o paralelo entre a realidade da comunidade LGBTPQIA+ e o discurso de membros dos poderes institucionais do Brasil.

No mesmo período em que o documentário foi exibido, já haviam iniciativas como o Escola sem Homofobia. Um material didático composto por filmes e cartilha para professores, baseada em um conjunto de diretrizes criadas pelo Ministério da Educação do Brasil (MEC) e elaboradas pelo Ministério dos Direitos Humanos em parceria com entidades não governamentais e apoiadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que tinha o objetivo de combater o preconceito nas escolas. O material ficou famoso quando o então deputado federal Jair Bolsonaro o “apelidou” de "kit gay" em meados de 2011, quando Fernando Haddad estava no comando do MEC. Por isso, em 2018, durante as eleições presidenciais, Jair Bolsonaro voltou a criticar a iniciativa em veículos da internet, para atacar o ex-ministro e então adversário à presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

A polêmica do “kit gay”, entre outros temas, foi um dos pontos que colocaram a população LGBTPQIA+ em um paralelo direto com o presidente durante a corrida eleitoral de 2018. De acordo com dados da pesquisa “Violência LGBT+ no período eleitoral e pós-eleitoral”, divulgada pela Folha de São Paulo no ano de 2018, 92,5% das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros entrevistados afirmaram ter notado o aumento da violência contra a comunidade. Desses dados, mais da metade dos entrevistados (51%) afirmou ter sofrido algum tipo de violência motivada por sua orientação sexual ou identidade de gênero durante as eleições de 2018. No total, a pesquisa entrevistou 400 pessoas LGBT+ em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.

Em Aracaju, no intervalo entre o primeiro e segundo turno das eleições presidenciais de 2018, aconteceu o assassinato de Laysa Fortuna, mulher trans morta após ser esfaqueada no tórax. A vítima foi assassinada por um morador de rua, que vagava pelo centro de Aracaju ameaçando travestis, afirmando que caso Jair Bolsonaro fosse eleito presidente todas as trans seriam mortas. Linda Brasil, atualmente vereadora de Aracaju pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), era amiga pessoal de Laysa Fortuna. “Era uma amiga, uma pessoa maravilhosa. A pessoa que a matou tinha no discurso, o fato de se sentir legitimado pelo Bolsonaro ter ido para o segundo turno, isso foi muito difícil; por que já foi o início do quanto esse governo ia ser prejudicial, ia incentivar ainda mais comportamentos de violência contra pessoas LGBTPQIA+”.

O panorama de violência repetiu-se pelo país inteiro. Durante uma entrevista concedida ao veículo UOL, o ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBTPQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos, Júlio Pinheiro Cardia, afirmou que no mês de outubro de 2018, o Disque 100 recebeu 330 ocorrências, um aumento de 272% sobre as 131 feitas no mesmo período do ano anterior às eleições. Serviços de ajuda como o Disque 100 — canal de atendimento 24 horas do governo federal que recebe e encaminha denúncias de violação dos direitos humanos para os órgãos responsáveis — são importantes, porque além de ajudar a sistematizar esses dados, podem salvar vidas. As ligações são gratuitas e anônimas, podendo ser feitas de qualquer telefone fixo ou celular.

Como denunciar?


Sergipe é o 4º estado do nordeste mais violento para pessoas LGBTPQIA+ e Aracaju é o 8º município mais violento do país para a comunidade de acordo com o último Observatório de Mortes de Pessoas LGBTI+ no Brasil. Apesar dos dados chocantes, em 2017 foi inaugurada na capital do estado sergipano, a Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (Dachri). A delegacia fica localizada na Rua Itabaiana, 258 - bairro Centro, Aracaju/ SE. Além da realização do boletim de ocorrência, as vítimas também podem entrar em contato com o setor através do número (79) 3205-9400. Além da Dachri, que presta o serviço de atendimento 24H, também existe o Centro de Referência de Combate e Prevenção à Homofobia (CCH) que trabalha com uma equipe multidisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais e assessores jurídicos, realizando ações preventivas na capital, nos municípios do interior e em instituições como presídios e hospitais. Mário Leony é LGBTPQIA+, baiano e atua há mais de 20 anos na polícia como delegado. Ele explica como proceder em casos de LGBTfobia:

Entrevista com o delegado Mário Leony.

Além de tudo que já foi esclarecido por Mário Leony, a advogada Kamilee Lima reforça que “os advogados também precisam demandar certa atenção, tendo em vista que nós somos os primeiros a ter o contato com a vítima, ora cliente, e também seremos aqueles que irão relatar, de forma técnica, tudo que foi vivenciado por aquela pessoa”. Apesar da Dachri, a delegada Meire Mansuet informa que Aracaju ainda não possui um levantamento que quantifique o número de pessoas LGBTPQIA+ que sofrem agressão; a advogada Kamilee Lima também ressalta que parte desse processo está aliado ao fato de que “não há nenhum dispositivo de lei voltado especificamente para a população LGBTPQIA+” e que “todos os direitos até hoje reconhecidos são frutos de jurisprudências, que nada mais são do que decisões do Poder Judiciário”.

Foram registradas 237 mortes de pessoas LGBT em 2020, de acordo com os dados do último levantamento, divulgado no mês de maio, pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). O número pode ser ainda maior, se levar em consideração as mortes que não são notificadas. O relatório divulgado pelo GGB, também revela a orientação sexual das vítimas dos casos registrados. Esse é um dos motivos dos agressores/assassinos expressarem o ódio através da violência, que retira a vida de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Orientação sexual é diferente de identidade de gênero. O primeiro conceito diz respeito ao gênero que o indivíduo sente atração, o segundo está relacionado a maneira que esse mesmo indivíduo se identifica como pessoa. O esclarecimento sobre esses conceitos é essencial para o entendimento dos dados, porque indica por exemplo que a violência contra corpos LGBTPQIA+ atinge majoritariamente travestis e mulheres trans, vitimadas em diferentes contextos e realidades. Das 113 travestis assassinadas, 63% delas foram executadas em espaços públicos, sobretudo em ruas e vias, evidenciando um contexto marcado pela prostituição.

De acordo com Linda Brasil, primeira vereadora trans eleita em Aracaju, infelizmente muitas mulheres trans e travestis estão na prostituição, porque a sociedade as condiciona a isso: “Muitas mulheres trans estão na prostituição pelo processo de violência, silenciamento e exclusão social”. Linda também lembra que não fugiu das estatísticas, antes de ser eleita e antes mesmo de entrar na universidade e participar de movimentos sociais, teve que recorrer a prostituição para sobreviver. Além de em casos extremos resultar em violência física, a LGBTfobia também atinge a esfera estrutural da sociedade, produzindo efeitos igualmente danosos para a população LGBTPQIA+. “O processo de exclusão faz com que muitas pessoas LGBTs sejam evadidas do meio familiar, escolar e profissional”, afirma a vereadora. Ainda de acordo com ela, a falta de políticas públicas e mecanismos que capacitem pessoas trans para o mercado de trabalho, também é um dos fatores responsáveis por essa condição de vida, tornando a entrada na prostituição não uma escolha, mas uma consequência. Assim como é possível afirmar que a homofobia existe, também é necessário ressaltar que o presidente não possui embasamento para proferir tais declarações. Dado o exposto, fica claro que a prostituição não é fator motivador das agressões e assassinatos, mas um agravante.

Essa declaração foi concedida pelo então deputado do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro durante o velório do ex-vice-presidente José Alencar, em 2011. Na ocasião, o deputado havia se envolvido em outra polêmica e utilizou esse argumento para se defender. Em um programa de TV exibido em 2011 na Rede Bandeirantes, o extinto CQC, ele tinha feito uma associação, afirmando que o namoro com mulheres negras era “promiscuidade”. Na época, quando questionado sobre isso, Jair Bolsonaro explicou que na verdade estava querendo se referir ao namoro entre dois homens e completou seu posicionamento proferindo essa declaração. Nesse mesmo programa de televisão, ele foi questionado sobre como reagiria se tivesse um filho gay, então, disse que isso não aconteceria, pois os seus filhos tiveram “uma boa educação”. Ainda no mesmo episódio, quando perguntado pela cantora e empresária Preta Gil sobre como reagiria se um de seus filhos se apaixonasse por uma mulher negra, ele deu a seguinte resposta: “Eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o teu”.

As falas no programa da Rede Bandeirantes renderam uma condenação e uma indenização de 150 mil reais e um processo que acabou perdurando até o ano de 2019, quando o Tribunal de Justiça (TJ) manteve a condenação de Bolsonaro pelas respostas dadas a Preta Gil, sendo condenado em primeira instância no Rio de Janeiro, cabendo ao presidente a decisão de recorrer. A ação civil pública foi ajuizada pelo Grupo Cabo Free de Conscientização Homossexual e Combate à Homofobia, Grupo Diversidade Niterói e pelo Grupo Arco-Íris de Conscientização.

O paralelo da corrida eleitoral


Apesar do ano de 2018 ter culminado na processo eleitoral, eleição que tornou Bolsonaro o 38º presidente do Brasil, em Sergipe, por exemplo, candidaturas como a de Linda Brasil (PSOL) representaram o outro lado da disputa política. Linda Brasil é uma mulher Trans, militante, Mestra em Educação e atual vereadora de Aracaju. Antes de ser eleita em 2020, ela foi candidata a deputada Estadual no ano de 2018, recebendo mais de 10.000 votos e sendo votada nos 75 municípios sergipanos. A vereadora é natural do município de Santa Rosa de Lima (SE), mas mora na capital sergipana desde os 11 anos. Destacou-se pelo trabalho de conscientização e respeito às questões que envolvem gênero e sexualidade.

Posse da Vereadora Linda Brasil – Primeira mulher trans a assumir uma mandata no parlamento de Sergipe (Fotografia: Marcelle Cristinne e Italo Cristóvão)

Linda conta que entrou na política quando ingressou na Universidade Federal de Sergipe (UFS): “Foi quando conheci o movimento estudantil e feminista. Fui a primeira mulher trans a entrar em um coletivo de mulheres auto-organizadas. Comecei a conhecer uma nova forma de fazer política, uma política combativa de ir nas ruas denunciar esse sistema” lembra a vereadora. Além disso, ela também diz que foi através das participações em atos públicos que nasceu a vontade de entrar efetivamente no universo político. “Eu dizia que nunca ia entrar na política, na universidade, eu comecei a ter consciência de como nós, ocupando esses espaços é revolucionário”, afirma a representante do PSOL.

Em 2015, Linda se filiou ao PSOL e em 2016 foi candidata a vereadora pela primeira vez em Aracaju e, mesmo sendo expressivamente bem votada, Linda não conseguiu ser eleita, tentando novamente em 2018 para o cargo de deputada estadual. Ela conta que o período de 2018 foi bem difícil. “Além de fazer minha campanha, eu fazia o enfrentamento ao presidente Bolsonaro. Eu sabia que a eleição dele iria prejudicar muito as nossas pautas”, afirma a Mestra em Educação. Ela explica que além de ocupar esses espaços e dar visibilidade à população LGBTPQIA+, também é importante denunciar as injustiças presentes no sistema político e social do Brasil. “Se a gente tiver uma mudança nessas discussões, não só beneficia a população LGBTPQIA+ como todas as pessoas. Com a minha ocupação e com a ocupação de outras mulheres, de pessoas negras e de pessoas LGBTs nesses espaços com essa consciência de transformar, de questionar e de não reproduzir esse sistema, a gente com certeza vai avançar muito”, conclui a vereadora.

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Linda Brasil em ato público ( Fotografia: Igor Matias)

Como explicou a vereadora Linda Brasil, a presença de pessoas LGBTPQIA+ na política levanta debates acerca de temas que beneficiam a sociedade inteira. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um eles. Em 2011, o STF passou a reconhecer a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. Assim, homossexuais puderam ter os mesmos direitos previstos na lei 9.278/1996, a Lei de União Estável. Já em 2013, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou uma jurisprudência que determinava que cartórios realizassem também o casamento civil para casais gays. Atualmente no Brasil, os direitos matrimoniais atribuídos ao um casal homossexual são os mesmos que são atribuídos a um casal hétero. Entre eles estão o direito à adoção, a herança e pensão, ao seguro de saúde, a conta conjunta e o compartilhamento de propriedade.


De acordo com o IBGE o casamento homoafetivo cresceu cerca de 61,7% no ano em que o presidente Bolsonaro foi eleito. No geral, 9.520 casais homoafetivos decidiram se unir formalmente em 2018. Do total registrado, 3.958 casamentos foram realizados só em dezembro daquele ano. O fisioterapeuta Bianor Emanuel Caroso e o Advogado Sergio Henrique Gonçalves fazem parte dessa estatística e relatam que tomaram a decisão por medo de alterações ou dificuldades na lei que reconhece o casamento de pessoas do mesmo sexo. “Nós dois resolvemos adiantar os planos de casamento e antecipar a data, antes que o péssimo presidente eleito assumisse. Demos entrada no cartório e pegamos o último dia de casamento civil, no dia 13 de dezembro do ano de 2018. Concretizamos o sonho”, afirma o fisioterapeuta.

Fotos do casamento Sérgio e Bianor – arquivo pessoal

Sergio Henrique conta que o casamento sempre foi um sonho na vida dos dois. “Logo quando estávamos nos conhecendo, ambos havíamos revelado um para o outro na realização do casamento, como um ciclo de reconhecimento e início de uma vida única. O Bianor já estava montando o seu apartamento na intenção de um dia casar, quando nos conhecemos só unimos força e mesmo sendo rápido, saiu tudo na realização de cada um. Fizemos uma pequena recepção para alguns amigos mais íntimos, e brindamos com os votos recebidos. Hoje, percebemos o quanto somos felizes e nada é por acaso, concretizamos um sonho e hoje dividimos a mesma vida, lutamos em busca de novos sonhos e crescimento profissional e pessoal, um dando apoio ao outro”.

A auxiliar administrativa Patrícia Silveira e a empresária Karina Pires também fazem parte do grupo que temia que as uniões homoafetivas fossem proibidas. “Já era uma vontade nossa, mas não queríamos fazer qualquer coisinha, queríamos que fosse lindo e perfeito do jeito que a gente sempre quis. Porém em 2019 veio (sic) o medo dos casamentos homoafetivos serem proibidos, então com dinheiro ou não, a gente se virou e correu pra garantir o nosso direito, antes que nos fosse tirado”, conta a empresária.

Ela explica que a união homoafetiva é importante porque o casamento simboliza compromisso e também representa uma conquista. “Não somos só um casal que mora junto. Também é uma forma de mostrar à sociedade que é algo sério. Não é de hoje que as pessoas não levam os relacionamentos homoafetivos a sério, sempre acham que é algo não duradouro, é diferente quando a gente diz ser casada, isso pesa bastante e sentimos que as pessoas lidam com a gente com mais respeito”, complementa Karina Pires.

Fotos de Karina e Patrícia – Arquivo pessoal

A empresária também conta que apesar de já possuir um filho, fruto de uma experiência sexual que teve aos 19 anos, elas planejam aumentar a família. Além disso, ela explica que cada vitória do movimento LGBTPQIA+ é importante. “Cada conquista que surge pra nós significa respeito. Cada dia que passa, ao contrário do que a grande maioria pensa, o preconceito só aumenta, por mais que nossos direitos e conquistas vão aparecendo, o preconceito vai aparecendo também e ter o direito de fazer coisas simples como se casar, parece que mostra o quanto somos normais ao mundo”, conclui Karina Pires.

Estigma social e saúde pública


Esse trecho foi retirado de uma participação do atual presidente no programa Super Pop, exibido na Rede TV em 2015, quando ele ainda era deputado. Nessa época, Bolsonaro foi vítima de uma Fake News. Circulava na internet o boato de que ele, enquanto deputado do Rio de Janeiro, teria colocado um projeto de Lei que defendia a separação do sangue doado por pessoas heterossexuais do sangue doado por pessoas homossexuais. Convidado pela emissora para se defender das acusações, Bolsonaro afirmou que o projeto não existia de fato, mas insinuou que o sangue doado por um homossexual não era completamente confiável, utilizando exatamente essas palavras. Para completar a sua argumentação, ele ainda afirmou que a maioria das pessoas tinham preferência pelo sangue doado por pessoas heterossexuais.

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Hostilidade com a Imprensa.

Além dos índices dos últimos anos disponibilizados pelo Ministério da Saúde apresentarem oscilações em relação ao gênero, faixa etária, região e categoria de exposição e infecção pelo vírus do HIV, no último Boletim Epidemiológico publicado pelo órgão, apenas com a exceção do Sudeste e Centro-Oeste, nas demais regiões do país o predomínio de infecção de Aids é por homens heterossexuais. Em número totais, de acordo com o último boletim publicado em 2020 referente ao ano de 2019, foram diagnosticados 41.919 novos casos de HIV e 37.308 casos de Aids. A maior concentração de casos de Aids está entre os jovens de 25 a 39 anos, de ambos os sexos, com 492,8 mil registros.

Para entender a questão, é preciso voltar novamente aos anos 80. A explosão do vírus HIV/Aids e a incidência da doença na população LGBTPQIA+ e, principalmente nos homens gays, aconteceu justamente quando a doação voluntária de sangue começou a ser popularizada no Brasil. Como explicou o pesquisador Max Wesley, a epidemia da Aids/HIV influenciou diretamente a comunidade. “A mídia nas décadas de 80 e 90 ajudaram a criar estereótipos horrendos para os homossexuais, pois incorporaram no imaginário social que o vírus estava condicionado à orientação sexual das pessoas”.

A doação voluntária de sangue começou a ser popularizada exatamente nesse período, sob essas circunstâncias. A Constituição de 1988, no Art. 199, § 4º, atribuiu ao Estado a responsabilidade da garantia de um processo de doação de sangue seguro e acessível a toda a população. De acordo com o Manual de promoções para Doação de Sangue disponibilizado em 2015 pelo Ministério da Saúde, a história da hemoterapia no Brasil passou por um longo processo de reestruturação dos serviços, avanços tecnológicos, legislações e normatizações técnicas para oferecer total segurança, tanto aos doadores quanto aos receptores.

O documento publicado pelo Ministério é sucinto ao garantir que a rede de hemoterapia do Brasil é realmente segura. A gerente de Ações Estratégicas do Centro de Hemoterapia de Sergipe – Hemose, Rozeli Dantas, garante que os hemocentros agem de acordo com as regras que visam unicamente a proteção do voluntário (doador) e do receptor (paciente): “O Hemocentro desenvolve um papel essencial para manutenção da vida e todos os processos que envolvem a doação do sangue, as análises sorológicas, o fracionamento do sangue (Hemácias, Plaquetas e Crio) e a sua liberação, para atendimento transfusional na rede hospitalar e se baseia em regulamentos e protocolos de saúde”.

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Sangue é vida e não rótulo

Porém, mesmo com toda segurança e evolução da Hemoterapia no Brasil, até 2020 existia uma restrição que condicionava os bancos de sangue a rejeitarem a doação de sangue de homossexuais que tinham feito sexo com outros homens nos 12 meses anteriores à coleta. A norma pode ser encontrada presente no texto de uma resolução de 2014, referente às "boas práticas do ciclo do sangue" (RDC Nº34), onde a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definia que homens que tiveram relação sexual com indivíduos do mesmo sexo deveriam ser impedidos de doar sangue por um ano após a relação sexual. A norma permaneceu em vigor até o ano de 2020.

Antes da efetivação da doação, é feita uma checagem de testes para garantir a segurança do processo. Uma série de exames e de perguntas são feitas para evitar a coleta de sangue contaminado. Independente de restrições, esses fatores já são o suficiente para eliminar qualquer transfusão com sangue contaminado, sendo de uma pessoa homossexual ou não. Essas foram algumas das premissas que levaram o STF a decidir que as normas do Ministério da Anvisa que limitavam a doação de sangue por homens gays eram, de fato, inconstitucionais. Inclusive, na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso, que foi contrário à restrição, chegou a argumentar que 1 ano era uma exigência desproporcional, já que o prazo entre a contaminação por HIV e a detecção por exame médico varia entre 10 a 12 dias.

Mesmo com as restrições impostas, o professor de espanhol, Arthur Benício revela que já fazem seis anos que ele é doador de sangue e que a prática já vem de família. “Minha mãe já era doadora há alguns anos e falava sobre o assunto em casa. Por motivos de saúde, ela precisou parar e me senti motivado a ter essa experiência da qual gostei muito e me senti bem a ponto de seguir doando frequentemente”, afirma o bacharel em espanhol. Ainda de acordo com ele, as restrições nunca foram sentidas na prática: “Não sei ao certo se essas restrições eram aplicadas em todos os centros de hemoterapia do país. Confesso que nos primeiros anos eu nem sabia dessa restrição, mas ao menos no Hemose, único local até então que fiz doação, nunca fui questionado sobre minha sexualidade, então, nunca senti na prática essa restrição. Nunca menti sobre minha orientação sexual, simplesmente nunca fui questionado e também não falava por espontânea vontade porque não acho que seja necessária essa informação para ser doador. Para mim, o que importa é a vontade de ajudar ao próximo” relata o professor.


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De acordo com Arthur Benício o ato altruísta surgiu por influência da sua mãe – Arquivo pessoal

Segundo a gerente de ações do Hemose, é possível afirmar que em termos técnicos a decisão do STF não altera em nada o processo de doação de sangue. “A decisão do STF, não alterou a dinâmica das doações de sangue, ou seja, não contribuiu para aumentar nem diminuir o número de doações em Sergipe. As reduções vivenciadas atualmente, são decorrentes da pandemia. Dessa forma, todo o público que procura ao Hemocentro com o desejo de doar e ajudar a salvar vidas tem que passar obrigatoriamente pelas mesmas avaliações (Pré-triagem e Triagem Clínica) para efetivar a doação de sangue”. Ainda de acordo com ela, “o serviço cumpre critérios técnicos que visam unicamente a proteção do voluntário e do receptor”.

Os depoimentos, técnico e pessoal, só reforçam que as restrições se sustentavam por motivações preconceituosas. A decisão do STF foi mais um passo na promoção de uma efetiva igualdade constitucional, mesmo que de forma tardia e conturbada. “Era uma restrição altamente retrógrada e sem cabimento, que deveria ter sido revista e alterada há tempos. Me colocando na posição de cidadão gay, claro que me senti muito feliz e respeitado por esta restrição absurda ter chegado ao fim”, finaliza Arthur.

Comportamento


Essa afirmação foi feita por Bolsonaro enquanto exercia o mandato de deputado federal em 2010, durante um debate no programa “Participação Popular”, na TV Câmara, na discussão de um projeto de lei que proibia qualquer punição corporal contra crianças e adolescentes. Na época, a fala do deputado foi bastante repercutida, gerando entrevistas no Jornal Folha de São Paulo.

A declaração feita pelo político infringe o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma diretamente que “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto” e também vai contra o artigo 227 da Constituição Federal que especifica que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”

Do ponto de vista legal a declaração é, embaraçosa, isso porque já agride os mecanismos legais que defendem os direitos da criança e do adolescente. Já quando analisada sob a perspectiva comportamental, o episódio protagonizado pelo político incita a inibição de sinais comportamentais apresentados por pessoas LGBTPQIA+ já na adolescência por parte dos próprios familiares, que em tese deveriam ser a rede de apoio e proteção.


Castigo pode ser definido como toda ação disciplinar ou punitiva que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança ou ao adolescente

De acordo com o ativista e psicólogo Norton Machado, as declarações de Bolsonaro fortalecem a ideia da violência infantil como um método para mudar comportamentos “indesejados” na criança. “O presidente em questão desconhece a formação e desenvolvimento psicossexual infantil e talvez acredite que a agressão física sirva para mudança de algum comportamento indesejado da criança, infelizmente ele não está sozinho com esse pensamento. O problema está também no sentido de que a agressão física seja considerada um meio de mudança de comportamento, sendo que há outros métodos muito mais eficazes e que auxiliam no desenvolvimento e educação infantil" afirma o psicólogo.

Ágatha Ludmila, estudante e mulher trans, conta que ela tem lembrança de que aos 7 anos já se identificava como pessoa do sexo feminino. “As pessoas falavam aos meus pais que eu tinha um jeito muito afeminado, eu brincava de casinha com os meus primos e eu sempre queria ser a tia, ou alguém que representasse uma figura feminina”, afirma a jovem. Ela ainda comenta que quando se é uma pessoa LGBTPQIA+ o processo de aceitação e reconhecimento da sua identidade de gênero é muito difícil, especialmente quando se tem uma família religiosa. “Eu não entendia, era bem complicado pra mim desde a infância”, lembra Ágatha. Ela ainda conta que pelo fato de ser criança, ela fazia isso espontaneamente, sem pretensão ou maldade.

Quando entrou na adolescência, Ágatha enfrentou diversos obstáculos. “Meus pais são evangélicos, foi bem complicado desconstruir um conceito que já estava na cabeça deles, principalmente pela questão da religião” lembra a jovem. Ela conta que quando entrou na adolescência os pais começaram a cobrar muito uma namorada e que muitas vezes se sentiu pressionada. Durante os cultos ela falou que sempre se sentiu incomodada pelo fato dos pastores sempre falarem sobre gênero e sexualidade. “Isso sempre me doeu, eu era obrigada a ouvir calada pelo fato da minha mãe me obrigar a frequentar uma religião que eu não gostava” desabafa Ágatha. Durante esse período ela revela que achou que Deus não a aceitava e tentou se suicidar, ficando internada na UTI por ingerir veneno.

O psicólogo Norton Machado explica que o modo como os pais lidam com as questões de gênero e da sexualidade dos filhos e filhas podem interferir na vida dessas pessoas quando adultas. “Toda interação relacional, seja com os pais ou não, de alguma forma trará alguma influência na vida do indivíduo no momento presente e/ou no futuro também. É possível afirmar que uma reação positiva possa auxiliar de maneira significativa a autoestima daquela pessoa em questão, justamente pela sensação de pertencimento, vínculo e proteção. Quando o contrário acontece, no sentido de uma reação negativa, pode gerar o oposto também, sensação de exclusão e baixa de autoestima que podem reverberar em outros aspectos da vida da pessoa”, explica o profissional.

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Orientação sexual não é uma questão de escolha

Ágatha também revela que a própria vivência com as pessoas religiosas do seu ciclo, é uma agressão psicológica. Além disso, a família ainda não entende muito bem a transição. “Eu nunca fui agredida fisicamente de fato, mas psicologicamente sim, meus pais diziam que eu não era mulher, que eu queria ser uma coisa que Deus não me fez” relata a jovem. Hoje ela diz que a relação com os pais melhorou muito depois que eles começaram a respeitar quem ela é. A situação de Ágatha Ludmila é bem semelhante a realidade de outros jovens LGBTs.

Davi Bispo, homem cis gay, é um estudante de 21 anos e foi mais uma vítima do preconceito dentro da própria casa. O jovem conta que conversou com a mãe a respeito da sua orientação sexual aos 12 anos. “Em um momento de raiva ela perguntou: Você é viado? Eu disse sou, daí por diante nós começamos a ter muitas brigas dentro de casa” relata o estudante. Ainda de acordo com ele, a mãe sofre de problemas com a bebida e o culpa por isso. “Minha mãe é viciada em álcool e por eu ser gay, até hoje ela fala que ela só bebe, só fuma e tem esses problemas por minha causa”.

Davi relata que as brigas com a sua mãe eram constantes. Inclusive, muitas vezes ela tentou agredi-lo fisicamente, tentando acerta-lo com uma enxada. “se eu não tivesse me defendido, tinha pegado (sic) no meu pescoço”. A situação ficou tão insustentável ao ponto da sua mãe expulsá-lo de casa. “Em uma briga ela me colocou para fora de casa, junto com o meu padrasto. Os dois me colocaram para fora de casa. Fiquei na rua, sem nada, largado” lembra Davi. Ele ainda conta que foi morar com a irmã do seu padrasto, a qual ele considera como uma tia “foi ela que apoiou, me deu abrigo por 6 anos”.

Norton Machado explica que quando não existe suporte de familiares, os jovens LGBTs buscam apoio em outras pessoas. “Muitas das vezes quando não existe apoio da própria família, é possível que a pessoa encontre em outras famílias e outras pessoas, como amigues, esse apoio e rede familiar. Felizmente hoje é mais comum encontrar esse tipo de suporte inclusive através das redes sociais e com grupos de apoio, sejam presenciais com as ONGs LGBTQIA+ local ou virtual” explica o psicólogo.

Em Aracaju, temos iniciativas como a CasAmor Neide Silva, instituição de luta e acolhimento à população LGBTPQIA+. Formada por ativistas, profissionais multidisciplinares e voluntários engajados na causa, o local oferece assistência de moradia e psicológica, além de dar oportunidades para que jovens abrigados possam ingressar no mercado de trabalho. O local, que serve de apoio e suporte para a comunidade, surgiu em 2018. O objetivo da instituição não é apenas acolher provisoriamente as pessoas que são expulsas de casa, mas apoiar a luta da comunidade como um todo. Dentre os objetivos da casa, são primordiais para o projeto promover, apoiar, acolher e resgatar a confiança, a dignidade, a autonomia e a autoestima dos acolhidos pelo projeto. A associação também oferta oficinas multidisciplinares e assistência para a inserção do acolhido no mercado de trabalho de forma formal ou informal, visando um meio de subsistência, e também realiza campanhas educativas, estimulando a realização de cursos, pesquisas e estudos.

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Inauguração da CasAmor Neide Silva

O objetivo da instituição não é apenas acolher provisoriamente as pessoas que são expulsas de casa, mas apoiar a luta da comunidade como um todo. Selma Pimentel é psicóloga e Coordenadora de Saúde Mental na CasAmor Neide Silva, e realiza atendimentos psicoterápicos para os assistidos que foram expulsos ou pessoas que vivem um ambiente adoecedor por conta de conflitos familiares por causa da sua sexualidade. “O trabalho da CasAmor Neide Silva, é de extrema importância para a população LGBTPQIA+ de todo o Estado, pois temos um trabalho amplo, onde nosso objetivo é minimizar ou até mesmo anular o impacto da violência sofrida pela nossa população, a saúde mental é muito afetada e sabemos que o Brasil é um país extremamente homofóbico. Além do acompanhamento psicológico temos também os plantões psicológicos, que é um atendimento breve e focado na demanda mais urgente, pois não conseguimos apoio de psicólogos suficientes por conta do grande aumento no número de casos de pessoas necessitando do serviço” afirma a coordenadora. Selma Pimentel ainda informa que “a CasAmor Neide Silva está de portas abertas para ajudar”. As pessoas da comunidade que estejam passando por violência psicológica, física, patrimonial ou moral derivados da LGBTFQIA+ fobia, podem entrar em contato através das redes sociais da instituição @casamorlgbtqi ou no pelo número de telefone (79) 99637-7805.

Família


Essa frase não foi repetida apenas uma vez pelo atual presidente da república, mas várias vezes por ele e por seus filhos. Em suas aparições, quase sempre quando questionado sobre como reagiria se tivesse um filho gay, Jair Bolsonaro sempre reagiu utilizando esse argumento. “Orgulho”, por definição gramatical, é um substantivo masculino que pode conotar um significado positivo ou negativo. Orgulho também pode ser definido como uma satisfação de um indivíduo a respeito de uma determinada característica, objeto ou atributo, e Jair Bolsonaro já deixou claro que expressa exatamente o oposto quando questionado a respeito da possibilidade de ter um filho gay. Mas ao generalizar o seu ponto de vista e se expressar dessa maneira, ele exclui, por exemplo, iniciativas como o Mães pela Diversidade.

O Mães pela Diversidade é uma Organização Não Governamental (ONG) formada por pais e mães de pessoas LGBTs. A iniciativa está presente em 22 estados do Brasil e é responsável por promover ações voltadas para o público e temática LGBTPQIA+. O coletivo nasceu na cidade de São Paulo, através de um encontro com pais e mães de pessoas lésbicas, gays, travestis e transexuais. Além da promoção de reuniões e de atividades como palestras, cursos e debates, o grupo é uma verdadeira rede de apoio e filantropia para pais e filhos LGBTs.

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Em Sergipe, o coletivo possui dois anos de atuação efetiva, sendo coordenado atualmente por quatro mulheres. Alessandra Farias é mãe da Marcela, mulher cisgênero e lésbica, e conta que a ideia de trazer a iniciativa para Sergipe surgiu através de uma reunião mediada pela CasAmor. “Cada estado tem uma coordenadora e uma subcoordenadora. O nosso formato é diferente. Somos nós quatro. Nós fazemos tudo juntas. Antes da pandemia fazíamos encontro mensais”, explica Alessandra.

No grupo sergipano, participam dos encontros 23 pais e mães de pessoas LGBTs. Ana Maria Cardoso, tem três filhos e diz que nem sempre foi fácil. “Eu nem fui sempre essa mãe pela diversidade não, eu vim de uma família muito católica e conservadora. Meu filho caçula me mostrou o que é ser mãe pela diversidade, ele me mostrou o coletivo nacional, ele falava muito da Linda Brasil, foi quando chegou a oportunidade de ir para a reunião” afirma a mãe do Vinícius, homem cis e gay.

Kênia Moura é mãe do Lucas, homem trans, e conta que no início, até a entrada no grupo, tudo foi muito difícil. “Não foi fácil no começo, mas em nenhum momento ele nunca sofreu nenhum tipo de violência, nem da minha parte, nem do pai. Eu tive que desconstruir toda aquela imagem. Eu sempre fui muito vaidosa. No início, eu ouvia ele falando e fechava os olhos e na minha cabeça vinha a imagem daquela menina de cabelo loiro, bem na cintura. Depois eu comecei a ver que o corpo era só uma casca”. Ainda de acordo com ela, participar do Mães pela Diversidade mudou a relação deles para melhor. “Mesmo sendo uma mãe que não tratasse o filho mal, eu percebi que não me posicionar em relação a isso era uma forma de não acolher”, afirma a mãe do Lucas, que junto ao coletivo conseguiu retificar o nome do filho em tempo recorde, 28 dias. O grupo não é restrito apenas para mães de jovens LGBTs, mesmo que em menor quantidade, também existem pais ativos na luta e, quando perguntados se sentem orgulho dos seus filhos e filhas, eles e elas respondem:

Alessandra Farias lembra que infelizmente essa não é a realidade de todos os jovens: “Nem todo mundo tem a sorte que nossos filhos tem, nós sabemos que somos exceções”. Sandra Regina, mãe do Bruno, homem cisgênero e gay, comenta a respeito da importância da existência de iniciativas como o Mães pela Diversidade e informa que todas as informações sobre o coletivo podem ser encontradas no site maespeladiversidade e na página oficial do grupo no Instagram @mãespeladiversidade. Kênia Moura fortalece a importância do apoio dos pais aos jovens LGBTPQIA+: “Se você não mostra para os outros como você quer que eles vejam seu filho, então eles não vão ver o seu filho da maneira que você vê”.

Apesar de possuir posicionamentos que vão de encontro aos valores e ideais defendidos pela população LGBTPQIA+, Bolsonaro ao longo da sua trajetória política sempre insistiu em comentar as pautas da comunidade. Por vezes questionado e instigado pelos próprios veículos de comunicação, o presidente caminha em paralelo, sendo contrário às lutas e conquistas do movimento. As linhas da história que levaram o presidente até o planalto são as mesmas que revelam a vivência de milhares de pessoas LGBTs que permanecem lutando pelo direito de sobreviver. Os paralelos apresentados ao longo dessa reportagem desnudam as declarações e alguns rostos por trás do histórico da comunidade LGBTPQIA+ e do discurso superficial do presidente.